Tradições de Soajo fazem a diferença na FAOT
Decorreu, de 12 a 14 de julho, a 20.ª edição da Feira das Artes e Ofícios Tradicionais (FAOT), com mais de trinta stands e um programa que aliou a tradição à mostra de saberes e sabores de Soajo (e não só). O mau tempo de sábado à tarde condicionou o negócio e a adesão de público, mas o domingo ajudou a salvar a realização.
O Campo da Feira, no seguimento da pretérita edição, foi o epicentro da iniciativa. A mostra de artesanato e de ofícios tradicionais, originalmente a razão de ser do certame, já não tem a pujança de outrora, mas as famosas construções (espigueiros em miniatura) sobressaem sempre pela beleza e pelo primor. Também se viram nos stands bonitas peças de vestuário, requintadas bonecas e felizes reaproveitamentos de materiais naturais, a maioria dos quais pertença de soajeiros, que este blogue melhor dará a conhecer no futuro.
Noutra ala do recinto, estiveram posicionadas as “tasquinhas”, onde foram degustados os típicos produtos da endogenia, como os fumados e a deliciosa carne da serra de Soajo, sem esquecer a gastronomia caseira (rissóis, pataniscas, bolinhos de bacalhau, moelas, panados, bifanas e caldo-verde), servida nas tabernas de Ricardo Fernandes e Ivo Baptista, Américo Peixoto e Sabores do Vez. Por perto, quem quis provou os néctares da região (a Associação dos Vinhos Verdes de Valdevez fez as honras do setor), os licores, as compotas, o mel…
Sem surpresa, o pão-de-ló, grande embaixador da Soajo, fez do stand de Debra Abelheira um dos mais procurados da feira. No expositor vizinho, os produtos Serrana Gourmet, de Lisa Araújo e Rose Marie Galopim, também saíram bastante.
Para além dos petiscos e da doçaria de qualidade superlativa, Soajo é vila famosa por ser uma localidade com ricas tradições, que, apesar de estarem a cair em desuso, ainda assim, vão sendo recriadas pelas associações locais de tempos a tempos.
O programa de domingo permitiu que o público “descobrisse” e/ou revivesse os “velhinhos” carros de vacas e a malhada do milho… Uma e outra tradição dizem muito de onde vem o povo soajeiro. Os seis primitivos meios de transporte (carregados de giesta, fentos, feno, lenha, dorna e arado), alguns dos quais com rodas e eixos de madeira, percorreram as labirínticas ruas do centro histórico de Soajo, desde o Largo do Eiró até às imediações do cemitério, num cortejo dominado pelos cantares da terra, pela concertina e, claro, pela farta chiadeira. As meninas e as mulheres, bem como os meninos e os homens, vestiram os típicos trajes da Terra e outros traziam tudo o que tinham e o que era preciso na labuta campestre: engaço, foucinhões, cajado, farnel…
Os animais vieram, na sua grande maioria, de outras freguesias e, até, do concelho vizinho de Ponte da Barca. José da “Rola”, de Ázere, foi quem encabeçou o desfile na dianteira do primeiro carro puxado pelas vacas. O soajeiro (e barquense) Gonçalo Dias (conhecido por “Janeiro”) era o único a representar a terra anfitriã, isto porque já (quase) ninguém em Soajo tem gado destinado a estes trabalhos (o uso da força dos animais foi substituído, há muito tempo, pelos tratores).
Mas é bom recordar que, não há muitas décadas, as famílias trabalhavam com estes carros de vacas e era assim que carregavam tudo. Era um trabalho duro que pouco rendimento dava.
De facto, em tempos idos, era do milho que se “fintava” a pobreza. Para recuperar essa memória, foi reproduzida, ao som das concertinas e dos cantares de Soajo, a malhada tradicional do milho na Eira do Penedo, num cenário de rara beleza. A assistência aplaudiu a atividade que apela à tradição, mas nos dias de correm ninguém faz malhada nos moldes antigos.
Ainda no domínio da essência da Terra, feliz a ideia que Jorge Lage teve ao fazer passear no domingo bonitos exemplares do sabujo, o cão que Soajo entregava aos reis de Portugal.
A História ensina que “o sabujo não é um cão qualquer, é, praticamente, a matriz de cães portugueses. Pela sua robustez e valentia, era muito utilizado, fundamentalmente, para prender as feras ou caça grossa”, palavras, cheias de sentido e com provas documentais, que o investigador soajeiro proferiu, em agosto de 2016, no ato de inauguração da estátua ao cão sabujo e aos seus cuidadores.
Mas o primeiro momento de exaltação do orgulho de ser soajeiro aconteceu logo na sexta-feira (à noite), no Largo do Eiró, onde o programa histórico-cultural da FAOT teve um arranque excelso com a mágica dramatização (apenas soajeiros na pele de atores) da peça O Juiz de Soajo, com vivas a Sarramalho, “o melhor, o mais justo, o mais digno e o maior da serra”.
O juiz de Soajo, considerado o “símbolo da inteligência e da justiça de todo o povo de Soajo”, proferiu a sentença relativa a um crime de morte do qual foi, ele próprio, testemunha: “Caros soajeiros, que o homem morra, que não morra, dê-se-lhe um nó que não corra, degradado para toda a vida, tem cem anos para se preparar…”, condescendeu o juiz de Soajo, superiormente representado por António Cerqueira (“Catito”). Como a sentença não foi acatada pela maioria das pessoas, houve recurso a instâncias superiores.
O juiz serrano, intimado a aparecer naquela que “devia ser a casa do Tribunal da Relação do Porto”, admitiu que “não temos os livros das leis, mas temos uma alma para salvar e uma consciência para nos guiar. Mataram um homem na serra, sem dúvida, e outro, andávamos no trabalho, foi culpado e preso. Que culpa há ai? Nenhuma, nenhuma, senhor juiz… Mas eu sabia que esse homem estava inocente e que alguém o havia de salvar”, alegou, antes de justificar, a pedido do juiz desembargador do Porto, os termos da sentença lavrada por ele.
“Que morra o criminoso que anda à solta, encontre-se ele onde se encontrar. Que não morra o inocente, o braço útil de trabalho. […] Dei cem anos ao mocinho para ele se preparar até à verdade chegar. Porque amamos o degredo da nossa vida, então, que dure cem anos”, explicou o juiz soajeiro que, assim, convenceu o juiz desembargador do Porto, do qual se despediu sem dó nem piedade.
“O juiz de Soajo, cadeira onde se sentou, nunca consigo a levou. E, mais do que isso, a partir de hoje, serei eu o desembargador de Soajo”, atestou o juiz Sarramalho, que, no regresso a Soajo, foi recebido com “vivas” e a todos agradeceu com uma declaração reveladora da força que caracteriza o povo soajeiro: “os serranos também se sabem defender”.
Supletivamente, também remeteu para a essência da localidade a exposição de trajes antigos (patente no espaço da antiga Câmara), que, com a preciosa ajuda de pormenores, recriou as indumentárias de tempos idos, segundo as circunstâncias (trajes de trabalho, de festa…). Pouco público a terá visto, mas quem viu ficou maravilhado com as relíquias expostas, todas cheias de história e muito bem cuidadas. Nesta “viagem” ao passado, a maioria não largou da vista as vestes com acessórios preciosos, a despensa improvisada, o volume que conta a História de Soajo, a masseira, os tamancos, a cesta de merenda com broa…
No mesmo registo de mostra para regalar, também a pequena exposição “Olhar Soajo – O Homem e a Serra” serviu para lembrar aos visitantes as riquezas que povoam o território de Soajo, uma Terra bafejada pela natureza em estado puro e pelo património construído.
É da serra, aliás, que provém uma parte da sobrevivência do povo soajeiro, através da produção de mel e da criação de gado. Fazendo jus ao peso socioeconómico da atividade, nove apicultores participaram no concurso que premiou Manuel Rodas (1.º), Cristina Martinho (2.º) e Daniel Couto (3.º).
À parte o concurso de mel, desenvolveu-se, em local distinto e em permanência, uma pequena mostra de animais (gado bovino, equino, ovino...), na qual alguns criadores se fizeram representar com pequenos efetivos.
A componente de animação (assegurada pela TVI na tarde de domingo) teve, este ano, uma versão mais reduzida. De sublinhar que, no contexto da música de raiz popular, a organização deu merecido palco aos grupos de Soajo (Rancho Folclórico das Camponesas da Casa do Povo da Vila de Soajo, Rancho Folclórico da Associação Cultural e Desportiva dos Amigos de Vilarinho das Quartas e o Grupo de Bombos 'Bate n’Avó'). O mau tempo de sábado cancelou a atuação do Rancho da Vila de Soajo, mas a rusga de sábado à noite ajudou a compensar o imprevisto.
A FAOT emparceirou, de novo, a Junta de Freguesia de Soajo, a Câmara Municipal de Arcos de Valdevez-ARDAL, a Cooperativa Agrícola de Arcos de Valdevez e Ponte da Barca, a Associação dos Vinhos de Arcos de Valdevez e várias associações de Soajo.
Uma palavra especial aos voluntários e à boa vontade dos soajeiros que rechearam o espaço-museu com trajes e diversos acessórios do lar.